segunda-feira, 24 de outubro de 2011

das asas, do querer e do fim

Desceu do ônibus ofegante: a corrida pra não perdê-lo foi árdua. Carregava nas mãos um par de asas e um relógio, que ia dar de presente a ela. Dos dois, ele sabia muito bem que ela só iria aceitar de bom grado o primeiro, pois o relógio era uma coisa que ela, por mais que quisesse pedir, sabia ser caro demais. Coisas caras são difíceis de se pedir. Antes, nos dias de antes, ele poderia definir a cor que cerrava o dia, em todos eles. Porém, nesse dia ele não foi capaz de distinguir nada, nenhuma corzinha ao longe do horizonte; nada. Atravessou aquela esquina de sempre, com aquela igreja que sempre o chamava atenção (sempre olhara para a torre, ao longe, quando criança). Enfim, bateu na porta da casa de número 96. Era "a terceira rua à esquerda, após a padaria". Foi assim que ela explicou a ele da primeira vez. Jamais esqueceu. Ela estava vestida com aquele casaco verde de sempre, que combinava com a cor dos olhos, ressaltando também o sorriso. Abriu espaço pra que ele entrasse, sempre o observando com o olhar receoso. Chegaram ao quarto de sempre, àquela mesma bagunça de sempre, na mesma cama de sempre. Conversaram um pouco sobre as coisas da vida, como de praxe. Falaram do que havia acontecido na semana, sobre como aquele amigo em comum havia ficado chateado por conta de uma brincadeira qualquer e sobre como aquele novo sobrinho dele era bonito. Até que chegaram no diálogo de sempre, no assunto de sempre (com os mesmos carinhos de sempre).


- E então...
- E então que eu vim te trazer dois presentes. - entrelaçou a mão direita na mão esquerda dela. Isso é engraçado, pois, nessa hora, a mão esquerda representava o coração que queria mas se negava, e a mão direita, dele, a razão que precisou de toda-força-do-mundo pra aparecer. Ela o observou estranha, mas ele continuou. Estendeu as asas pra que ela pegasse. Ela pegou. E ele continuou:
- Mesmo assim, mesmo depois de tudo isso, e mesmo sabendo que eu provavelmente não lhe valha a pena, por qualquer motivo que seja, estão aqui as asas que você queria e precisava. - ela segurou-as meio trêmula, meio incerta sobre o que queria; mas, ainda assim, segurou-as. Ele continuou:
- Está aqui, também, o relógio necessário. Eu sei que você não vai querer aceitar e que vai se sentir culpada, mas é um presente de bom grado. Ele não marca o meu tempo ou seu tempo, ele marca exatamente o Tempo Certo. Se acontecer do Tempo Certo coincidir com o seu tempo e o meu tempo, eu vou querer as asas de volta. Caso contrário, você pode continuar com as asas e planar sobre qualquer outro jardim. Só te peço que seja um jardim mais bonito que o meu.

[...]

2 comentários:

  1. Lindo demais, pena que as circunstâncias nas quais você o escreveu não são as melhores :/

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  2. Não por acaso encontrei o link para esse conto no Facebook e não por acaso parece que o conto me leu.... :/ "Não há acasos".

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