quinta-feira, 29 de setembro de 2016

do abril despedaçado

Lembrei daquela música que gostávamos quando estava morando em outra cidade. Havia tempos que não tinha notícias dela, mas sabia que andava pelo mundo como eu já havia andado. Lembro de seu cheiro, de seu toque em minha barba, de seus cabelos cor-de-trigo, dos olhos verde-mar, iguais aos meus, das paredes do meu quarto todas rabiscadas pra aliviar a tempestade que era respirá-la. Ela foi a primeira que conheceu minha avó, que minha avó lembrava de perguntar.

Lembro que sempre que ela chegava minha vó ficava feliz, e que quando ela demorava a aparecer minha avó perguntava sobre ela. Ela possuía um carro vermelho, um sorriso de festim. Nunca fui tão bem cuidado como quando estive com ela.

Foram meus 21 anos de ouro, a melhor época da minha vida, com mais vida, mais amor, mais paixão. Olhando agora pro passado, nada me abala tanto quanto aquela época. Nos conhecemos em uma disciplina. Ela precisava de uma tesoura para cortar uma fita adesiva. Era aula de geometria descritiva e terça-feira pela manhã. Os seus cabelos estavam amarrados num rabo de cavalo pequeno, e ela usava uma blusa verde. Esperança, talvez.

Meu irmão veio falar comigo hoje. Ele disse que agora entende os rabiscos no meu quarto, o motivo das paredes estarem todas riscadas. Ela era muito importante pra mim. Nossas músicas eram "Você se lembra", do Geraldo Azevedo, e "Te valorizo", da Tiê. Estava num show do Geraldo e ele começou cantando "Entre as estrelas do meu drama, você já foi meu anjo azul". Liguei pra ela na mesma hora e coloquei o celular no viva-voz. Não falei mais nada. Depois disso, as ligações se tornaram mais frequentes e duradouras. 5 ou 6 horas durante a madrugada, falando sobre a vida e tudo o mais, sobre como seria se eu a beijasse, sobre se eu teria coragem de fazê-lo.

Depois mostrei a ela a outra música, da Tiê. Ela publicou em seu blog sobre essas coisas, me levando para mais perto.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

da pressa

Estava tão apressado, tão apressado, mas tão apressado, que esqueceu a cabeça em cima do pescoço e as coisas no lugar.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

de quem poderia ter sido

Morava num apartamento perto da universidade. Era longe do centro da cidade, e a janela da cozinha tinha uma vista pra vegetação local. Era meio verde e meio morta, como aquelas vegetações de seca. O vento ventava, como a ele foi estipulada essa tarefa difícil, e fazia um barulho assustador quando passava por entre as janelas. Essa janela, a da cozinha, ficava acima da pia. O apartamento era simples, tinha apenas dois quartos e uma sala com varandinha. O cheiro era cheiro bom, de casa sempre limpa, com a mesma cama esperando por mim todo fim de semana. Dormíamos em quartos separados, apesar dos pesares. Mas ela sempre me chegava com muita coisa. Poderia ter sido você, Maria.

*

O carro do pai dela era amarelo, e ele era um daqueles caras bem rigorosos e tradicionais, nunca havia gostado de mim. Era músico, sabia muito bem o que meninos que brincavam de bandas faziam com garotinhas. Sempre teve receio. Ela era linda, uma das mais bonitas de sempre! Tinha um olhar semicerrado, como quem sempre andava procurando por algo. Eu lembro que no caderno dela tinha umas coisas escritas pra mim, mas foram poucas as vezes que tive a oportunidade de ler. Tããão cheirosa, ela! Mas ela me dava muito pouco. Poderia ter sido você, Marta.

*

Fugia, fugia, fugia...
Poderia ter sido você, Clarice.

*
Tinha uma aptidão artística muito grande! Em seu quarto se viam tecidos pintados e quadros, instrumentos personalizados e origamis. O quarto era grande, o maior da casa. A mãe relutou, pois queria o quarto grande pra si, mas depois que viu que a filha, tão linda, queria mesmo trabalhar com arte, abriu mão do cômodo. Mães sempre fazem isso.
Ela adorava uma festa, farrava sempre e, das primeiras vezes que a encontrei, sempre estava bêbada. Pele marrom, cor-de-ébano, cabelo curto e lindo. E o riso? Fácil, fácil. Era linda, talvez a mais linda! Mas sempre me escondia as coisas. Poderia ter sido você, Zoé.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

do interesse

Primeiro foi o contato interesseiro, daqueles de quem se aproxima por puro interesse mesmo. Interesse. Só interesse. Ele ainda pensou que era ela querendo ser amiguinha ou algo assim, mas era só interesse. Ainda fez umas brincadeiras idiotas na escada, apostando corrida, e limpou o rosto dela, melado de rímel. Rímel lembra Himmel, que quer dizer 'céu' na língua alemã. Era a rua que marcava um livro que marcava ela, pra ele. Os olhos não tinham mudado muito com o tempo. Os cabelos se tornaram menos naturais e o rosto adquiriu algumas feições diferentes das de outrora. Ele só se deu conta disso quando estava preocupado tentando consertar o carro, quebrado, na frente da casa dela. Simpática como sempre, não tinha contato com os vizinhos ainda. Teria facilitado a vida de todo mundo de uma forma considerável se, ao menos uma vez, ela abrisse as portas pro que é novo sem ter muito receio. No seu ínterim possuía uma força muito grande, e era dessa força que ele tinha sentido saudades durante esses três longos anos. Claro que, naquela conversa-de-colo, que ele tinha imaginado infinitas vezes como seria, ficou acertado que, caso tivessem continuados amigos após o rompimento-final, provavelmente seriam necessários mais três anos pra que tudo ficasse bem, ainda que por interesse. Mas o que aconteceu foi que o interesse moldou a situação de tal forma que começaram a ser sustento um pro outro novamente. Mas agora era diferente, agora a visão tinha um teor diferente: não havia malícia ou segundas nem terceiras intenções, era tudo simples e líquido. Por mais que ele tivesse feito aquela-promessa-que-ela-odeia, não haviam intenções a mais. A única intenção que ele tinha era cuidar dela e se fazer presente. No fim das contas o que acabou foi o namoro, mas o apreço, o carinho e o amor permaneceram os mesmos. Pelo menos pra ele. Descobriu que não queria estar com ela pelo fato do que ela foi um dia, mas pelo fato do que ela representa pra ele: a experiência pra lidar com ciúmes, a sabedoria pra controlar impulsos de loucura, ainda que ele se pegue comentendo alguns infanticídios; a casa que serve como abrigo num dia em que o carro não queira pegar e, claro, o abrigo oferecido pelo abraço dela. De todas as pessoas que ele carrega talvez ela fosse a que ele sempre carregou, mesmo não querendo ou mesmo na distância. Hoje, passando por ele, vi que ele está um tanto mais aliviado: tem novamente aquele-colo pra repousar.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

das asas, do querer e do fim

Desceu do ônibus ofegante: a corrida pra não perdê-lo foi árdua. Carregava nas mãos um par de asas e um relógio, que ia dar de presente a ela. Dos dois, ele sabia muito bem que ela só iria aceitar de bom grado o primeiro, pois o relógio era uma coisa que ela, por mais que quisesse pedir, sabia ser caro demais. Coisas caras são difíceis de se pedir. Antes, nos dias de antes, ele poderia definir a cor que cerrava o dia, em todos eles. Porém, nesse dia ele não foi capaz de distinguir nada, nenhuma corzinha ao longe do horizonte; nada. Atravessou aquela esquina de sempre, com aquela igreja que sempre o chamava atenção (sempre olhara para a torre, ao longe, quando criança). Enfim, bateu na porta da casa de número 96. Era "a terceira rua à esquerda, após a padaria". Foi assim que ela explicou a ele da primeira vez. Jamais esqueceu. Ela estava vestida com aquele casaco verde de sempre, que combinava com a cor dos olhos, ressaltando também o sorriso. Abriu espaço pra que ele entrasse, sempre o observando com o olhar receoso. Chegaram ao quarto de sempre, àquela mesma bagunça de sempre, na mesma cama de sempre. Conversaram um pouco sobre as coisas da vida, como de praxe. Falaram do que havia acontecido na semana, sobre como aquele amigo em comum havia ficado chateado por conta de uma brincadeira qualquer e sobre como aquele novo sobrinho dele era bonito. Até que chegaram no diálogo de sempre, no assunto de sempre (com os mesmos carinhos de sempre).


- E então...
- E então que eu vim te trazer dois presentes. - entrelaçou a mão direita na mão esquerda dela. Isso é engraçado, pois, nessa hora, a mão esquerda representava o coração que queria mas se negava, e a mão direita, dele, a razão que precisou de toda-força-do-mundo pra aparecer. Ela o observou estranha, mas ele continuou. Estendeu as asas pra que ela pegasse. Ela pegou. E ele continuou:
- Mesmo assim, mesmo depois de tudo isso, e mesmo sabendo que eu provavelmente não lhe valha a pena, por qualquer motivo que seja, estão aqui as asas que você queria e precisava. - ela segurou-as meio trêmula, meio incerta sobre o que queria; mas, ainda assim, segurou-as. Ele continuou:
- Está aqui, também, o relógio necessário. Eu sei que você não vai querer aceitar e que vai se sentir culpada, mas é um presente de bom grado. Ele não marca o meu tempo ou seu tempo, ele marca exatamente o Tempo Certo. Se acontecer do Tempo Certo coincidir com o seu tempo e o meu tempo, eu vou querer as asas de volta. Caso contrário, você pode continuar com as asas e planar sobre qualquer outro jardim. Só te peço que seja um jardim mais bonito que o meu.

[...]

domingo, 11 de setembro de 2011

da estorieta nossa

Irei burlar a segurança do blog pra colocar um continho que só deveria vir depois de outros dois que já estão prontos.

'Conheceu-a numa noite qualquer, vestida de chuva e nuvens de neblina. O palco à sua frente cantava as músicas de estórias anteriores, que já havia vivido há muito... Tropeçaram um no outro como aqueles tropeços de palhaço-bobo-de-circo, que tropeça pra fazer graça ao mundo que o cerca. Um comentário engraçado e uma cumplicidade repentina fizeram do show uma música só, cantada no ouvido, cercada de elogios e espanto por parte da menina-que-não-se-enamorava-em-festas. Houveram telefones trocados e o próximo fim de semana marcado. Depois, foi um avião e dois mil e quinhentos quilômetros de saudade.'

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

das velhas estórias novas

Vamos que hoje começaremos uma nova saga, trate logo de entrar! Achei esse livro perdido na estante dos livros que não me convinham mais. Contém estórias e contos, chamegos e conversas das mais bonitas que um dia já li. Trata-te logo de acomodar-te que, pela primeira vez em anos, estou eufórico! Esse texto foi retirado de um diário de um senhorzinho que morava pras bandas do Nordeste. Costumava viajar muito e fazer de tudo um pouco. No total, são 10 volumes que tratei de trazer aqui pra baixo. Pois lá vai:

"26 de Abril de 1810, Oxfordshire, Inglaterra.

Hoje parece mesmo foi que o mundo acordou torto. As saudades das coisas do Brasil me são grandes. Lembrando-me de tudo que já me ocorrera na vida, lembrei-me sim daquelas coisas todas que percorreram os caminhos que nos levaram à distância. Antes fosse distância só em milhas de quilômetros, não anos-luz. Percebia em suas vestes que a armadura que usavas não lhe caía bem, nem mesmo lhe fazia uma pessoa melhor. A infelicidade que insistias em buscar não fazia de ti uma pessoa melhor, apenas te fazia mais infeliz. Nem mesmo nossos poucos momentos de júbilo se sobressaíram ante todo o ocorrido. Hoje nem nos conhecemos mais, mesmo quando nos esbarramos nas ruas sujas da cidade. Pode acontecer, nesse infinito universo de infinitas possibilidades, que um dia nos reencontremos e conversemos naquele banco de praça, enquanto os outros nos observam; e pode acontecer, sim, de que quando lembrares da rosa e da carta, ou das coisas do mar que te entreguei, teu tempo já tenha passado e eu esteja naquele bar que bem conheces, rindo do que um dia eu mesmo achei bonito."